sexta-feira, 30 de maio de 2008

Os limites do cinema

Ao sair de uma sessão do novo Indiana Jones (Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal), uma coisa é certa: a de que acabamos de ver um bom filme. Está tudo lá, como deveria estar. As escapadas mirabolantes, as risadinhas de Harrison Ford , o soturno humor, os comunistas malvados, como num bom filme americano. Dezenove anos depois, temos a impressão de que Henry Jones Jr. sobreviveu ao teste do tempo e consegue se lançar como um personagem que ainda consegue agradar a sua e a nova geração.
Mas há algo de novo, e não são apenas as (supostas) rugas de Harrison Ford. O Indiana Jones do século XXI caminha por cenários que jamais existiram, luta com criaturas hipotéticas e, desafiando todas as leis da física e da biologia, apesar de sua idade, realiza acrobacias e movimentos que jamais havia feito quando mais jovem.
Se fazer com que o novo, e caça-níquel, filme do mais famoso arqueólogo do cinema fosse bom era algo tão improvável quanto impossível, Steven Spielberg vai além: ele conseguiu transformar Indiana Jones em uma ficção científica de segunda categoria, com reviravoltas de roteiro dignas de folhetim mexicano (concorrência para Caminhos do Coração?) e um roteiro que mal consegue se explicar, que caminha ora para a obviedade, ora para a total falta de senso.
É irônico que eu esteja postando isso agora, pois há alguns dias atrás eu estive prestes a comentar por aqui a falta de imaginação - e o descrédito cada vez maior desta - que impera em nossa modernidade. Sei que preciso aplaudir qualquer tentativa de criar algo diferente (ainda mais quando estamos falando de uma série de quase vinte anos atrás, que foi descaradamente copiada por uma tonelada de filmes). Com o advento da tecnologia gráfica, tornou-se muito mais fácil materializar tal imaginação - idéias como Star Wars ou O Senhor dos Anéis jamais teriam saído do papel sem a computação gráfica. Ao mesmo tempo, que hoje, com (muito) dinheiro, é possível se fazer de tudo - uma câmera na mão, uma idéia na cabeça, e um potente computador.
O cinema vira então uma corrida de quem consegue reunir mais frames animados num único filme. O excesso de uso de tal técnica, que eu já havia observado em 300 e no terceiro Piratas do Caribe, atinge nível jamais visto neste Indiana Jones. De um instante para o outro, perde-se totalmente a essência da série: se antes o personagem corria pelo deserto, e soltava piruetas por entre os tanques de guerra, é porque ele estava lá. Hoje Indiana Jones vai até à floresta amazônica sem sair de Los Angeles! Ele luta sobre jipes que nem acelerar conseguiriam, e é engolido por criaturas que não existem senão numa tela de computador.
E é isto que subitamente nossos filmes viraram: um espetaculoso festival de "olhe o que nós conseguimos fazer com nossas máquinas! Não é impressionante?" Os atores? Que atores? Se hoje eles já estão atuando no piloto automático, também nos livraremos deles quando pudermos.
Nos aproximamos, a cada temporada do verão norte-americano, aos limites mais obscuros do cinema. Um show de luzes, e explosões, e bundas falsificadas, e heróis falsificados, e mundos falsificados. Tal qual a tecnologia do qual é feito, este cinema também tem um limite. Qual será esse limite? Ou melhor: qual será o nosso limite (do público)? Até onde, até que sessão do cinema, estaremos dispostos a pagar por um jogo de videogame no qual não temos nem o direito de jogar - senão aceitar submissamente as explicações lançadas por uma dúzia de seres humanos plastificados?

Me sinto culpado. Justo eu que sempre tento ser tão progressista em relação à tecnologia e à ciência. Talvez eu seja mesmo um velho. Talvez eu esteja entre os que se identificam com a figura do Harrison Ford - a cada dia que passa envelhecendo mais e mais, de uma época onde filmes eram filmados e não modelados. Mas a nova e afoita geração está aí: estes já são o Shia LaBeouf (o filho do Indiana Jones no filme), uma geração que vê filmes com cenários fictícios, a geração que saiu do colégio e que só está preocupada com a sua moto, apenas por aí procurando uma aventura qualquer sobre alienígenas, e armas, e sangue.

domingo, 18 de maio de 2008

O ano em que ninguém se lembrou do Natal

(data incerta para postar tal conto: mas escrevi esse dezembro passado e, por falta de inspiração, vou reciclá-lo aqui mesmo)


O ano em que ninguém se lembrou do Natal


O despertador soou as seis e quarenta e cinco da manhã e Renata levantou da cama como o mesmo resmungo de sempre. Escovou os dentes, escolheu uma roupa ao acaso e ligou a TV para ouvir uma coisa e outra do jornal.
Era dia de Natal, mas ela não sabia.
Ninguém sabia. Aconteceu que, naquele ano, ninguém se lembrou do Natal.
Nos calendários, não se constava; as lojas, não anunciavam; ninguém se lembrou, nem por um instante. Não temiam, não desconfiavam: naquele ano, ninguém se lembrou do Natal.
Ninguém se lembrou do Natal, e os motivos jamais saberemos. Comemorara-se a festividade natalina no ano passado, como em todos os anos. Tudo ia normal, perfeitamente normal naquele ano; nada ia melhor ou pior do que costuma ser. Sobre o Natal, porém, não se falou. Nenhum comentário, na televisão, nas bocas das crianças, nas igrejas. Era a humanidade, unida, que inconscientemente boicotava o Natal? Vingança divida? Sinal dos novos tempos?
Sobre o Natal já não nos é mais possível divagar. O fato é que, nesse instante, Renata tranca as portas de casa e põe-se a caminho do trabalho.
Nas ruas, repetem-se cenas diárias da macro-tragédia que são os dias atuais. O mundo, eufórico com suas democracias orgulhosas, suas invenções luminescentes, descobertas mil; no caminho do trabalho, porém, Renata ainda vê as misérias de milênios atrás, proliferando-se talvez. Se ela soubesse que aquele era dia de Natal, poderia pensar: o que fizeram dois mil e tantos natais em nosso mundo? Tantos natais, comemorados ano a ano, mudaram alguma coisa?
Não; retiro o que disse: ela não pensaria isso nem se soubesse que era Natal. Eu mesmo sei que teremos Natal nesse ano e não havia pensado nisso.
Às vezes, por um momento, alguém lhe lança um olhar estranho, desolado, esquecido, como se perguntando o que mais estaria faltando nesse dia singular, mas ignorando os presentes fatos. Era normal, devia ser normal, imaginou Renata, aquele era mais um dia normal.
Eram homens que se reuniam nas bancas de jornal, lendo as manchetes do dia, papeando sobre política ou futebol. Ônibus que passavam correndo, xingamentos pelo trânsito caótico. Bebês chorando, mulheres gritando, rádios tocando, velhos reclamando, policiais apitando. Criaturas que iam a vinham pelas ruelas, apressadas, ansiando por algo que não sabiam o que era, algo que inconscientemente sentiam falta e jamais saberiam do que sentiam falta, por que sentiam falta.
Todos porém nada faziam; incrédulos desacreditados coitados homens que nada sabem, nada vêem, a tudo desconhecem e a tudo estão alheios. Num compasso de segundos e minutos, o Natal avança, esquecido, ainda esperançoso de todas as coisas que prometeu e nada cumpriu.
Renata chega ao trabalho. Sinistras palavras são trocadas, folhas de papel caem no chão, a mulher que serve o café está doente em casa. No fundo de sua mente, ela sabe que troca olhares desconfiados com o homem da mesa à frente, e que ele lhe lança palavras silenciosas: “e o Natal, Renata? O que fizeram com o Natal?”. Ela faz algum sinal com a cabeça, não, ela não pode responder, ela não sabe, ninguém sabe, o que virou do Natal.
Já nada mais era normal. Entre baixarias e ligações desesperadas, estes humanos agora andam pesados, lentos, suas palavras saem baixas e seus ouvidos estão falhando. Suas mentes divagam improváveis soluções, seus rostos estampam uma desconhecida culpa e uma ignorante vergonha.
O expediente chega ao final. Homens se apressam aos corredores, no metrô, nas ruas tudo ainda é caos. Renata está exausta, acende um, dois, cigarros e corre para casa, anseia pelo iminente fim daquele efêmero Natal que tanto a sufoca.
A noite chega e as pessoas já estão na cama. Não conseguem dormir. Choram pelo Natal perdido. Choram, na verdade, pelos Natais perdidos. Choram pelas suas vidas, pelo o que se tornou as suas vidas. Não faz calor, mas abrem as janelas e de repente estão todos olhando pelas janelas, para as ruas silenciosas lá em baixo, e invejam, como invejam, todos os jovens desse planeta que ainda verão tantos Natais pela frente. Os jovens olham pelas janelas e invejam todos os mais velhos que já viram tantos Natais. Invejam, silenciosamente invejam os Natais dos vizinhos, dos amigos, do chefe, do presidente, do mendigo.
Depois voltam para cama, já se passa da meia-noite e o Natal já acabou e ninguém se lembrou dele. Ainda não conseguem dormir. Será assim até a próxima manhã, quando acordarão cansados e deprimidos e começarão a fazer os planos para o próximo carnaval.