sexta-feira, 4 de julho de 2008

A falência da humanidade

A câmera vai se aproximando. Por entre o imenso e inóspito deserto de rocha e terra, podemos observar, ao longe, uma cidade. Uma cidade com seus gigantescos prédios e ostentar no horizonte. Agora estamos cada vez mais perto dela. Não, mas, peraí: não são prédios. São montes de lixos. O cenário é isto: apenas prédios e montes de lixos, estes mais do que aqueles. Nada. Ninguém. Mentira. Algo surge. E, sim, é ele: WALL-E, o pequeno robô em formato de cubo que veio para mudar a história da animação.

É espantoso verificar que na belíssima epopéia de um robô que passa os dias catando lixo, e de sua barata de estimação, possamos encontrar uma história que engloba em sua quase totalidade as grandes questões do mundo contemporâneo. A solidão, a questão ambiental, a dominação das grandes corporações, o distanciamento que a tecnologia causa nos seres humanos, a influência da mídia no comportamento dos indivíduos, o consumismo. WALL-E, a nova animação da Pixar, é uma grande fábula metafórica sobre os rumos que a humanidade resolveu escolher para si mesma.

Desde que vi o primeiro teaser do filme, há um ano atrás, momentos antes de assistir Ratatoille, confesso que nunca fiquei exatamente animado com a história de um robozinho feioso que vive sozinho numa Terra destruída. Porém, até hoje nunca deixei de ver nenhuma animação da Pixar no cinema e não seria dessa vez que eu ia quebrar a tradição. Para minha grata surpresa, já nos primeiros instantes, com as cenas descritas no primeiro parágrafo, a animação ganha status de obra-prima e, embora perca um pouco (muito pouco) de seu brilho com o decorrer, funciona como prova definitiva de que a Pixar se supera a cada nova animação e que está a centenas de anos-luz à frente de suas concorrentes.

Se, para citar alguns exemplos recentes, Os Incríveis trabalha com a questão da importância da família, Carros fala sobre a importância das amizades, Ratatouille traz a mensagem de “siga seus sonhos”, é difícil achar uma mensagem principal embutida em WALL-E. Particularmente detesto aquelas animações moralistas que tentam a todo instante passar mensagens bonitinhas para as crianças, e é talvez aqui que a Pixar se destaca em sua originalidade e execução: é tudo muito sutil, tudo muito nas entrelinhas, o que não subestima a inteligência e capacidade de percepção das crianças, e torna ainda mais delicioso para os adultos.

O encantador de WALL-E, o solitário robô que anda por um devastador cenário de Terra pós-apocalíptica, com sua pequena maletinha onde guarda as preciosidades achadas nos lixões, é que ele tem um pouco de todos nós. Um pouco solidão, um pouco amor; um de pouco sonho e um pouco medo. Subitamente o robozinho é imagem-simbolo de que somos nós mesmos e no que caminhamos para ser. A descoberta, já no segundo ato da animação, de que a humanidade não desapareceu, apenas reforça o sentimento de degradação: a humanidade do futuro de WALL-E não é nada mais do que a humanidade de hoje, em nossa realidade: uma humanidade falida. WALL-E nos ensina que nós também, todos nós, algum dia teremos de juntar nossas carcaças e sair catando o lixo, sobretudo moral, que estamos produzindo cada vez mais.

Gracioso, engraçado e perturbador (o que talvez seja uma característica inédita para uma animação de tal proporções) mas, sobretudo, belo: essas são as características de animação WALL-E. Não apenas mais um filme divertido, ou emocionante, ou amável: WALL-E é uma película para ser visto e revisto por essas e pelas próximas gerações, e certamente o será. Muitos já o comparam ao novo O Rei Leão, e não é exagero. Somente o tempo, porém, irá dizer qual o impacto da animação na história do cinema mundial. E não será pequeno.

(em apenas uma semana, WALL-E já alcançou a nona posição na lista dos 250 melhores filmes de todos os tempos do site IMDB, baseada, até a data de tal publicação, em vinte mil votos do mundo todo)

(texto feito às presas durante o intervalo do jogo do Fluminense)