sábado, 9 de maio de 2009

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aqui jaz um blog.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

A Índia é aqui, a Índia não é aqui.




(esse post não pretende ser uma crítica do filme)

Algo de trágico une este Slumdog Millionaire (aqui no Brasil, Quem Quer Ser Um Milionário?, a ser lançado em março) à realidade e ao destino brasileiro.
A produção norte-americana, filmada toda na Índia, estabelece já ao seu início uma premissa interessante, com a questão dirigida ao público: "Jamal Malik está a uma pergunta de ganhar vinte milhões de rúpias. Como ele conseguiu? (A) Ele chantageou; (B) Ele tem sorte; (C) Ele é um gênio; (D) Está escrito". A partir de então, toda sua atenção é focada em responder o questionamento inicial, como se perguntasse qual o sentido do próprio fio que move nossa vida e nosso destino, algo que há milênios a humanidade se pergunta: somos nós que moldamos nosso próprio futuro, ou já está tudo escrito?
Tendo tido a feliz opção de usar somente atores indianos (ou descendentes de indianos,) com muitos diálogos na língua local, e não em inglês, Slumdog Millionaire tem um título auto-explicativo: é a história de Jamal Malik, um orfão sem nenhuma instrução das favelas de Mumbai, que a vida inteira foi tratado como mero vira-lata ou coisa pior, e que vai a uma espécie de Show do Milhão indiano.
Já nos primeiros minutos da película, se torna inevitável pensar: é Cidade de Deus fazendo escola. Mas não é exatamente nisso que me referi no início desse texto. Não sei ao certo que tipo de recepção que o filme terá no Brasil - tanto por parte de crítica e público -, mas a verdade é que nada nesta história tem algo de novo ou diferente do que os filmes de nosso país já tanto retrataram. A vida pobre nas favelas, a exploração do trabalho infantil, as gigantescas desigualdades sociais e econômicas, a violência das grandes cidades - está tudo aqui.
Com direito à cenas no Taj Mahal (substitua-o pelo Cristo Redentor) e à danças locais (substitua-as pelo nosso carnaval - compartilhamos com os indianos um certo gosto pelo bizarro, pelo implausível), o filme serve quase como um cartão postal, nada agradável, do gigantesco país indiano, de sua cultura e de seu povo, para o resto do mundo. De repente, descortina-se, sobretudo aos norte-americanos, esse novo e peculiar universo dos países emergentes, das novas potências, das economias com crescimento de mais de 5% ao ano. Tendo causado frisson por onde passou, o filme já se consagra como pequena pérola estrangeira (não é a toa que ganhou 4 Globos de Ouro e foi indicado, hoje, a 10 Oscars), tal como Cidade de Deus há quatro anos. A trajetória dos dois filmes é e grande similaridade, com o mesmo efeito: o orgulhoso mundo ocidentalizado descobre as novas futuras potências mundiais.
Como cinema, Slumdog Millionaire prima por conseguir manter um bom ritmo ao longo de suas duas horas, atiçando cada vez mais a curiosidade do espectador, contando, para isso, com atuações sólidas (mas só eu que não gostei do ator principal, Dev Patel? Pra mim o Keanu Reeves ganhou um concorrente à altura na categoria "interepretação sem nenhuma expressão"), embora peque quase o tempo todo em seus clichês um tanto, digamos, bollywoodianos. Embora sensação do momento - é o favorito na atual temporada de premiações -, em algum futuro próximo Slumdog Millionaire será rapidamente esquecido, tal como a Índia - e suas criançãs orfãs, e suas favelas, e suas etc, etc...
Em dias de crise econômica, talvez o maior recado que Slumdog Millionaire, acompanhado de seus primos do cinema brasileiro, seja: país emergente? Potência mundial? Onde?
Mas o grande feito do filme é passar exatamente a mensagem contrária - nesses tempos incertos de um mundo cheio de chagas, precisamos urgentemente mesmo de uma história feliz.


sábado, 23 de agosto de 2008

O barco e a baleia

Avançam o barco e a baleia, no seu oceano vazio, silencioso, inóspito. Na azulada imensidão de suas existências, avançam o barco e a baleia, donos de si mesmo, livres para navegar, livres para avançar; a baleia e o barco.

Qual a tamanha diferença entre o barco e a baleia? Quais são as vicissitudes, as idiossincrasias, os pequeninos detalhes que separam os dois gigantes? Seriam as máquinas de ferro e aço do barco? Seriam, os grandes dentes da baleia? O casco de metal inoxidável? O coração pulsante, rápido, extremo?

Porque?

E vão avançando o barco e a baleia, e os dois agora debatem a colossal distância que entre os dois se impõe: as milhares de eras que tiveram de ser vividas para que aquele encontro se realizasse. Discutem o barco e a baleia sobre suas vidas opostas, incompatíveis; sim, o oceano é grande, o mar é vasto, mas somente um deles poderá navegar por aquelas águas. É possível, será possível, que ambos possam desbravar, juntos, as águas jamais descobertas de seus diferentes mundos?

Não.

De repente o barco se despede da baleia; aquela é uma batalha, sim é uma batalha, o amor entre os dois é uma batalha, e o barco acaba de vencê-la. De seu luminoso casco, orgulha-se o barco de ser barco, da sua perfeição extrema, a rotação calculada do seu motor, das suas manivelas esmeradamente posicionadas. À baleia fica o acaso da vida, o acaso da existência que se impõe a todos os seres vivos, o acaso de seu destino trágico e cruel.

Avança o barco no oceano vazio. A baleia à deriva, lamentando o imprevisto de sua vida. Com um último grito de desespero – aquele choro das baleias que é desespero, que só pode ser desespero -, lamenta o infortúnio de sua vida. Lamenta a sua vida. E o barco.

(inspirando por esta notícia)

sexta-feira, 4 de julho de 2008

A falência da humanidade

A câmera vai se aproximando. Por entre o imenso e inóspito deserto de rocha e terra, podemos observar, ao longe, uma cidade. Uma cidade com seus gigantescos prédios e ostentar no horizonte. Agora estamos cada vez mais perto dela. Não, mas, peraí: não são prédios. São montes de lixos. O cenário é isto: apenas prédios e montes de lixos, estes mais do que aqueles. Nada. Ninguém. Mentira. Algo surge. E, sim, é ele: WALL-E, o pequeno robô em formato de cubo que veio para mudar a história da animação.

É espantoso verificar que na belíssima epopéia de um robô que passa os dias catando lixo, e de sua barata de estimação, possamos encontrar uma história que engloba em sua quase totalidade as grandes questões do mundo contemporâneo. A solidão, a questão ambiental, a dominação das grandes corporações, o distanciamento que a tecnologia causa nos seres humanos, a influência da mídia no comportamento dos indivíduos, o consumismo. WALL-E, a nova animação da Pixar, é uma grande fábula metafórica sobre os rumos que a humanidade resolveu escolher para si mesma.

Desde que vi o primeiro teaser do filme, há um ano atrás, momentos antes de assistir Ratatoille, confesso que nunca fiquei exatamente animado com a história de um robozinho feioso que vive sozinho numa Terra destruída. Porém, até hoje nunca deixei de ver nenhuma animação da Pixar no cinema e não seria dessa vez que eu ia quebrar a tradição. Para minha grata surpresa, já nos primeiros instantes, com as cenas descritas no primeiro parágrafo, a animação ganha status de obra-prima e, embora perca um pouco (muito pouco) de seu brilho com o decorrer, funciona como prova definitiva de que a Pixar se supera a cada nova animação e que está a centenas de anos-luz à frente de suas concorrentes.

Se, para citar alguns exemplos recentes, Os Incríveis trabalha com a questão da importância da família, Carros fala sobre a importância das amizades, Ratatouille traz a mensagem de “siga seus sonhos”, é difícil achar uma mensagem principal embutida em WALL-E. Particularmente detesto aquelas animações moralistas que tentam a todo instante passar mensagens bonitinhas para as crianças, e é talvez aqui que a Pixar se destaca em sua originalidade e execução: é tudo muito sutil, tudo muito nas entrelinhas, o que não subestima a inteligência e capacidade de percepção das crianças, e torna ainda mais delicioso para os adultos.

O encantador de WALL-E, o solitário robô que anda por um devastador cenário de Terra pós-apocalíptica, com sua pequena maletinha onde guarda as preciosidades achadas nos lixões, é que ele tem um pouco de todos nós. Um pouco solidão, um pouco amor; um de pouco sonho e um pouco medo. Subitamente o robozinho é imagem-simbolo de que somos nós mesmos e no que caminhamos para ser. A descoberta, já no segundo ato da animação, de que a humanidade não desapareceu, apenas reforça o sentimento de degradação: a humanidade do futuro de WALL-E não é nada mais do que a humanidade de hoje, em nossa realidade: uma humanidade falida. WALL-E nos ensina que nós também, todos nós, algum dia teremos de juntar nossas carcaças e sair catando o lixo, sobretudo moral, que estamos produzindo cada vez mais.

Gracioso, engraçado e perturbador (o que talvez seja uma característica inédita para uma animação de tal proporções) mas, sobretudo, belo: essas são as características de animação WALL-E. Não apenas mais um filme divertido, ou emocionante, ou amável: WALL-E é uma película para ser visto e revisto por essas e pelas próximas gerações, e certamente o será. Muitos já o comparam ao novo O Rei Leão, e não é exagero. Somente o tempo, porém, irá dizer qual o impacto da animação na história do cinema mundial. E não será pequeno.

(em apenas uma semana, WALL-E já alcançou a nona posição na lista dos 250 melhores filmes de todos os tempos do site IMDB, baseada, até a data de tal publicação, em vinte mil votos do mundo todo)

(texto feito às presas durante o intervalo do jogo do Fluminense)

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Os limites do cinema

Ao sair de uma sessão do novo Indiana Jones (Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal), uma coisa é certa: a de que acabamos de ver um bom filme. Está tudo lá, como deveria estar. As escapadas mirabolantes, as risadinhas de Harrison Ford , o soturno humor, os comunistas malvados, como num bom filme americano. Dezenove anos depois, temos a impressão de que Henry Jones Jr. sobreviveu ao teste do tempo e consegue se lançar como um personagem que ainda consegue agradar a sua e a nova geração.
Mas há algo de novo, e não são apenas as (supostas) rugas de Harrison Ford. O Indiana Jones do século XXI caminha por cenários que jamais existiram, luta com criaturas hipotéticas e, desafiando todas as leis da física e da biologia, apesar de sua idade, realiza acrobacias e movimentos que jamais havia feito quando mais jovem.
Se fazer com que o novo, e caça-níquel, filme do mais famoso arqueólogo do cinema fosse bom era algo tão improvável quanto impossível, Steven Spielberg vai além: ele conseguiu transformar Indiana Jones em uma ficção científica de segunda categoria, com reviravoltas de roteiro dignas de folhetim mexicano (concorrência para Caminhos do Coração?) e um roteiro que mal consegue se explicar, que caminha ora para a obviedade, ora para a total falta de senso.
É irônico que eu esteja postando isso agora, pois há alguns dias atrás eu estive prestes a comentar por aqui a falta de imaginação - e o descrédito cada vez maior desta - que impera em nossa modernidade. Sei que preciso aplaudir qualquer tentativa de criar algo diferente (ainda mais quando estamos falando de uma série de quase vinte anos atrás, que foi descaradamente copiada por uma tonelada de filmes). Com o advento da tecnologia gráfica, tornou-se muito mais fácil materializar tal imaginação - idéias como Star Wars ou O Senhor dos Anéis jamais teriam saído do papel sem a computação gráfica. Ao mesmo tempo, que hoje, com (muito) dinheiro, é possível se fazer de tudo - uma câmera na mão, uma idéia na cabeça, e um potente computador.
O cinema vira então uma corrida de quem consegue reunir mais frames animados num único filme. O excesso de uso de tal técnica, que eu já havia observado em 300 e no terceiro Piratas do Caribe, atinge nível jamais visto neste Indiana Jones. De um instante para o outro, perde-se totalmente a essência da série: se antes o personagem corria pelo deserto, e soltava piruetas por entre os tanques de guerra, é porque ele estava lá. Hoje Indiana Jones vai até à floresta amazônica sem sair de Los Angeles! Ele luta sobre jipes que nem acelerar conseguiriam, e é engolido por criaturas que não existem senão numa tela de computador.
E é isto que subitamente nossos filmes viraram: um espetaculoso festival de "olhe o que nós conseguimos fazer com nossas máquinas! Não é impressionante?" Os atores? Que atores? Se hoje eles já estão atuando no piloto automático, também nos livraremos deles quando pudermos.
Nos aproximamos, a cada temporada do verão norte-americano, aos limites mais obscuros do cinema. Um show de luzes, e explosões, e bundas falsificadas, e heróis falsificados, e mundos falsificados. Tal qual a tecnologia do qual é feito, este cinema também tem um limite. Qual será esse limite? Ou melhor: qual será o nosso limite (do público)? Até onde, até que sessão do cinema, estaremos dispostos a pagar por um jogo de videogame no qual não temos nem o direito de jogar - senão aceitar submissamente as explicações lançadas por uma dúzia de seres humanos plastificados?

Me sinto culpado. Justo eu que sempre tento ser tão progressista em relação à tecnologia e à ciência. Talvez eu seja mesmo um velho. Talvez eu esteja entre os que se identificam com a figura do Harrison Ford - a cada dia que passa envelhecendo mais e mais, de uma época onde filmes eram filmados e não modelados. Mas a nova e afoita geração está aí: estes já são o Shia LaBeouf (o filho do Indiana Jones no filme), uma geração que vê filmes com cenários fictícios, a geração que saiu do colégio e que só está preocupada com a sua moto, apenas por aí procurando uma aventura qualquer sobre alienígenas, e armas, e sangue.

domingo, 18 de maio de 2008

O ano em que ninguém se lembrou do Natal

(data incerta para postar tal conto: mas escrevi esse dezembro passado e, por falta de inspiração, vou reciclá-lo aqui mesmo)


O ano em que ninguém se lembrou do Natal


O despertador soou as seis e quarenta e cinco da manhã e Renata levantou da cama como o mesmo resmungo de sempre. Escovou os dentes, escolheu uma roupa ao acaso e ligou a TV para ouvir uma coisa e outra do jornal.
Era dia de Natal, mas ela não sabia.
Ninguém sabia. Aconteceu que, naquele ano, ninguém se lembrou do Natal.
Nos calendários, não se constava; as lojas, não anunciavam; ninguém se lembrou, nem por um instante. Não temiam, não desconfiavam: naquele ano, ninguém se lembrou do Natal.
Ninguém se lembrou do Natal, e os motivos jamais saberemos. Comemorara-se a festividade natalina no ano passado, como em todos os anos. Tudo ia normal, perfeitamente normal naquele ano; nada ia melhor ou pior do que costuma ser. Sobre o Natal, porém, não se falou. Nenhum comentário, na televisão, nas bocas das crianças, nas igrejas. Era a humanidade, unida, que inconscientemente boicotava o Natal? Vingança divida? Sinal dos novos tempos?
Sobre o Natal já não nos é mais possível divagar. O fato é que, nesse instante, Renata tranca as portas de casa e põe-se a caminho do trabalho.
Nas ruas, repetem-se cenas diárias da macro-tragédia que são os dias atuais. O mundo, eufórico com suas democracias orgulhosas, suas invenções luminescentes, descobertas mil; no caminho do trabalho, porém, Renata ainda vê as misérias de milênios atrás, proliferando-se talvez. Se ela soubesse que aquele era dia de Natal, poderia pensar: o que fizeram dois mil e tantos natais em nosso mundo? Tantos natais, comemorados ano a ano, mudaram alguma coisa?
Não; retiro o que disse: ela não pensaria isso nem se soubesse que era Natal. Eu mesmo sei que teremos Natal nesse ano e não havia pensado nisso.
Às vezes, por um momento, alguém lhe lança um olhar estranho, desolado, esquecido, como se perguntando o que mais estaria faltando nesse dia singular, mas ignorando os presentes fatos. Era normal, devia ser normal, imaginou Renata, aquele era mais um dia normal.
Eram homens que se reuniam nas bancas de jornal, lendo as manchetes do dia, papeando sobre política ou futebol. Ônibus que passavam correndo, xingamentos pelo trânsito caótico. Bebês chorando, mulheres gritando, rádios tocando, velhos reclamando, policiais apitando. Criaturas que iam a vinham pelas ruelas, apressadas, ansiando por algo que não sabiam o que era, algo que inconscientemente sentiam falta e jamais saberiam do que sentiam falta, por que sentiam falta.
Todos porém nada faziam; incrédulos desacreditados coitados homens que nada sabem, nada vêem, a tudo desconhecem e a tudo estão alheios. Num compasso de segundos e minutos, o Natal avança, esquecido, ainda esperançoso de todas as coisas que prometeu e nada cumpriu.
Renata chega ao trabalho. Sinistras palavras são trocadas, folhas de papel caem no chão, a mulher que serve o café está doente em casa. No fundo de sua mente, ela sabe que troca olhares desconfiados com o homem da mesa à frente, e que ele lhe lança palavras silenciosas: “e o Natal, Renata? O que fizeram com o Natal?”. Ela faz algum sinal com a cabeça, não, ela não pode responder, ela não sabe, ninguém sabe, o que virou do Natal.
Já nada mais era normal. Entre baixarias e ligações desesperadas, estes humanos agora andam pesados, lentos, suas palavras saem baixas e seus ouvidos estão falhando. Suas mentes divagam improváveis soluções, seus rostos estampam uma desconhecida culpa e uma ignorante vergonha.
O expediente chega ao final. Homens se apressam aos corredores, no metrô, nas ruas tudo ainda é caos. Renata está exausta, acende um, dois, cigarros e corre para casa, anseia pelo iminente fim daquele efêmero Natal que tanto a sufoca.
A noite chega e as pessoas já estão na cama. Não conseguem dormir. Choram pelo Natal perdido. Choram, na verdade, pelos Natais perdidos. Choram pelas suas vidas, pelo o que se tornou as suas vidas. Não faz calor, mas abrem as janelas e de repente estão todos olhando pelas janelas, para as ruas silenciosas lá em baixo, e invejam, como invejam, todos os jovens desse planeta que ainda verão tantos Natais pela frente. Os jovens olham pelas janelas e invejam todos os mais velhos que já viram tantos Natais. Invejam, silenciosamente invejam os Natais dos vizinhos, dos amigos, do chefe, do presidente, do mendigo.
Depois voltam para cama, já se passa da meia-noite e o Natal já acabou e ninguém se lembrou dele. Ainda não conseguem dormir. Será assim até a próxima manhã, quando acordarão cansados e deprimidos e começarão a fazer os planos para o próximo carnaval.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

251 a.C.

É noite e faz frio. Isso, porém, não impede que a alvoroçada multidão se reuna ali para apreciar aquele grotesco espetáculo de luz e som que apenas se forma à sua frente. Passam agitados, muitos gritam e alguns riem, mas não há nada de engraçado acontecendo por ali naquele momento. É uma risada abafada, quase culpada, acompanhada de um sorriso sádico e irônico e de um ignorante, mas satisfatório, sentimento de prazer.
Toda a energia acumulada durante a semana, durante o ano talvez, é usada e extravasada durante aquele momento ímpar. E olha que o espetáculo ainda nem começou. A platéia continua agitada, não parece se cansar e nem pára por um minuto. Ela é cada vez maior. Por entre as fileiras de homens, mulheres e crianças que esperam ansiosamente por aquele ritual sanguinolento, vendedores ambulantes passam para vender seus produtos.
Por hora se faz silêncio; noutras, a gritaria parece reinar. A baixaria, contudo, é uma constante durante todo o evento que prossegue noite e dia adentro. Homens da justiça são logo chamados para conter a euforia acumulada, mas estes também logo seu unem à platéia insana.
As portas finalmente se abrem e o show vai começar. A multidão corre ensandecida para pegar os melhores lugares do camarote. E, sim, finalmente, lá estão eles, os indivíduos que agora irão digladiar-se naquele antro de baixas intenções, até a morte talvez! Os seres mais baixos, sim, eles merecem passar por isso, ah, como eles merecem! O alvoroço do agrupamento ganha proporções épicas ao ver aquele duelo entre seres humanos de tão baixo nível, tão inferiores, que, se não conseguirem se matar entre si, serão mortos pela sociedade, pois todos que estão nela presentes têm o direito e o dever de eliminá-los de sua pacífica e perfeita convivência. Xingam, soltam incontáveis palavrões, se pudessem também pulariam e entrariam na batalha, com força e intensidade para matar - sim, eles vão matar - esses seres-humanos - ah, eles nem mais seres-humanos são, e a verdade é que nós somos tão melhores que eles.

Parece uma história de 251 a.C, mas é o que acaba de acontecer, e, pelo que me acomete, estamos no século XXI.

sábado, 26 de abril de 2008

Memórias póstumas

O mais triste e trágico desse blog é que ele já nasceu morto.
Ele nasceu morto porque ele foi criado no já distante dezembro passado. É. E estamos em abril. Nasceu morto porque ele veio de uma idéia morta, ultrapassada e antiquada (estamos na era do YouTube e essa gente ainda faz blog!). Nasceu morto, sobretudo, porque ele simplesmente nasceu. Morto. E nada foi feito para salvá-lo desse fúnebre estado de morte morrida. Nenhum movimento emergencial, desesperado, de revivê-lo. Nenhum enterro às pressas. Morto sem deixar herdeiros. Criado apenas, foi deixado lá, em seu mais latente estado de puro óbito. Nada foi avisado, noticiado, estipulado, planejado. Morto apenas.
Como o objetivo da reinvenção é exatamente o de evitar obviedades, talvez a morte seja um bom começo para esse blog. Não é tão anormal assim, em fato. Nessa sociedade onde blogs nascem mortos e crianças morrem vivas, talvez de fato se torne necessário reinventar nossa noção de mundo. Observar que começar morto é um belo começo para um blog que poderia ter começado de centenas maneiras mas que, por uma ironia do destino e uma dose de preguiça humana, resolveu começar morrendo.
O próprio fato da morte traz uma série de vantagens. Pelo menos jamais alguém poderá reclamar "mas e o seu blog? morreu?", porque ele já está falecido faz tempo. Talvez, nesse caso, a pergunta mais primordial seja "mas e o seu blog? quando vai nascer?". É esse o momento que mais vivemos esperando em nossa existência. O nascimento de nossas vidas. Vivemos mortos e ainda estamos a esperar pelo dia em que nasceremos. O nascimento é, de longe, muito mais incerto que a morte. Talvez jamais nasçamos. Talvez jamais alguém tenha nascido. Talvez isso ainda demore muito para acontecer.
Portanto, por hora, enquanto ainda não nascemos, vamos apenas nos reinventando.