domingo, 18 de maio de 2008

O ano em que ninguém se lembrou do Natal

(data incerta para postar tal conto: mas escrevi esse dezembro passado e, por falta de inspiração, vou reciclá-lo aqui mesmo)


O ano em que ninguém se lembrou do Natal


O despertador soou as seis e quarenta e cinco da manhã e Renata levantou da cama como o mesmo resmungo de sempre. Escovou os dentes, escolheu uma roupa ao acaso e ligou a TV para ouvir uma coisa e outra do jornal.
Era dia de Natal, mas ela não sabia.
Ninguém sabia. Aconteceu que, naquele ano, ninguém se lembrou do Natal.
Nos calendários, não se constava; as lojas, não anunciavam; ninguém se lembrou, nem por um instante. Não temiam, não desconfiavam: naquele ano, ninguém se lembrou do Natal.
Ninguém se lembrou do Natal, e os motivos jamais saberemos. Comemorara-se a festividade natalina no ano passado, como em todos os anos. Tudo ia normal, perfeitamente normal naquele ano; nada ia melhor ou pior do que costuma ser. Sobre o Natal, porém, não se falou. Nenhum comentário, na televisão, nas bocas das crianças, nas igrejas. Era a humanidade, unida, que inconscientemente boicotava o Natal? Vingança divida? Sinal dos novos tempos?
Sobre o Natal já não nos é mais possível divagar. O fato é que, nesse instante, Renata tranca as portas de casa e põe-se a caminho do trabalho.
Nas ruas, repetem-se cenas diárias da macro-tragédia que são os dias atuais. O mundo, eufórico com suas democracias orgulhosas, suas invenções luminescentes, descobertas mil; no caminho do trabalho, porém, Renata ainda vê as misérias de milênios atrás, proliferando-se talvez. Se ela soubesse que aquele era dia de Natal, poderia pensar: o que fizeram dois mil e tantos natais em nosso mundo? Tantos natais, comemorados ano a ano, mudaram alguma coisa?
Não; retiro o que disse: ela não pensaria isso nem se soubesse que era Natal. Eu mesmo sei que teremos Natal nesse ano e não havia pensado nisso.
Às vezes, por um momento, alguém lhe lança um olhar estranho, desolado, esquecido, como se perguntando o que mais estaria faltando nesse dia singular, mas ignorando os presentes fatos. Era normal, devia ser normal, imaginou Renata, aquele era mais um dia normal.
Eram homens que se reuniam nas bancas de jornal, lendo as manchetes do dia, papeando sobre política ou futebol. Ônibus que passavam correndo, xingamentos pelo trânsito caótico. Bebês chorando, mulheres gritando, rádios tocando, velhos reclamando, policiais apitando. Criaturas que iam a vinham pelas ruelas, apressadas, ansiando por algo que não sabiam o que era, algo que inconscientemente sentiam falta e jamais saberiam do que sentiam falta, por que sentiam falta.
Todos porém nada faziam; incrédulos desacreditados coitados homens que nada sabem, nada vêem, a tudo desconhecem e a tudo estão alheios. Num compasso de segundos e minutos, o Natal avança, esquecido, ainda esperançoso de todas as coisas que prometeu e nada cumpriu.
Renata chega ao trabalho. Sinistras palavras são trocadas, folhas de papel caem no chão, a mulher que serve o café está doente em casa. No fundo de sua mente, ela sabe que troca olhares desconfiados com o homem da mesa à frente, e que ele lhe lança palavras silenciosas: “e o Natal, Renata? O que fizeram com o Natal?”. Ela faz algum sinal com a cabeça, não, ela não pode responder, ela não sabe, ninguém sabe, o que virou do Natal.
Já nada mais era normal. Entre baixarias e ligações desesperadas, estes humanos agora andam pesados, lentos, suas palavras saem baixas e seus ouvidos estão falhando. Suas mentes divagam improváveis soluções, seus rostos estampam uma desconhecida culpa e uma ignorante vergonha.
O expediente chega ao final. Homens se apressam aos corredores, no metrô, nas ruas tudo ainda é caos. Renata está exausta, acende um, dois, cigarros e corre para casa, anseia pelo iminente fim daquele efêmero Natal que tanto a sufoca.
A noite chega e as pessoas já estão na cama. Não conseguem dormir. Choram pelo Natal perdido. Choram, na verdade, pelos Natais perdidos. Choram pelas suas vidas, pelo o que se tornou as suas vidas. Não faz calor, mas abrem as janelas e de repente estão todos olhando pelas janelas, para as ruas silenciosas lá em baixo, e invejam, como invejam, todos os jovens desse planeta que ainda verão tantos Natais pela frente. Os jovens olham pelas janelas e invejam todos os mais velhos que já viram tantos Natais. Invejam, silenciosamente invejam os Natais dos vizinhos, dos amigos, do chefe, do presidente, do mendigo.
Depois voltam para cama, já se passa da meia-noite e o Natal já acabou e ninguém se lembrou dele. Ainda não conseguem dormir. Será assim até a próxima manhã, quando acordarão cansados e deprimidos e começarão a fazer os planos para o próximo carnaval.

2 comentários:

Unknown disse...

Não sei o que comentar.

Ótimo texto.

Unknown disse...

Bons motivos para ser vencedor!
Sem mais, muito bom.

Saudades de ouvir seus textos às quartas pela manhã.